A dependência dos recursos partidários dificulta o desenvolvimento de candidaturas com viabilidade.
Por Bianca Maria Gonçalves e Silva e Bárbara Mendes Lôbo Amaral
No ano de 2021, a luta feminina por maior participação nos espaços de poder e de visibilidade social ganhou um novo e importante marco normativo. A Lei 14.192/2021[1] estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher e traz importantes alterações ao Código Eleitoral, à Lei dos Partidos Políticos e à Lei das Eleições[2].
O artigo 3º da lei tipifica como violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. E o parágrafo único prescreve que igualmente constituem atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo[3].
A mesma lei fez incluir o artigo 326-B no Código Eleitoral que criminaliza os atos contra mulheres candidatas a cargos eletivos ou detentoras de mandatos que tenham a finalidade de impedir ou dificultar a sua campanha eleitoral e o desempenho do seu mandato.
É de se registrar que a lei impõe que os estatutos partidários deverão conter, entre outras, normas sobre prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher [artigo 15, X da Lei 9096/97]. A regra deveria ter sido cumprida pelos partidos políticos até 03 de dezembro de 2021, tendo o Ministério Público Eleitoral enviado ofício aos partidos alertando sobre a necessidade de atendimento à lei[4]. Porém, a maioria deixou de cumprir a medida.
Portanto, a Lei 14.192/2021 constitui um novo marco normativo bastante celebrado, ainda que o dispositivo pudesse ser mais amplo para abarcar outras esferas da vida pública, como as pré-candidatas, dirigentes partidárias, ativistas e militantes. A legislação deve ser aplicada pelo Poder Judiciário nas mais diversas facetas em que a violência política de gênero pode se apresentar.
Há muito se constata a disparidade de gênero nos cargos de poder, especialmente na representação política. Os dados mundiais são alarmantes.
O combate à violência política de gênero passa, também, por uma militância positiva de afirmação da aptidão e da vocação política das mulheres. Pretende-se avaliar qual o papel e o espaço da mulher na sociedade, sob o crivo do voto, a partir do lançamento de candidaturas viáveis.
Segundo dados do Fórum Econômico Mundial de 2021 (FEM), a Global Gender Gap Report 2021, a igualdade de gênero está ainda mais distante das mulheres devido à pandemia de Covid-19 e levará 135,6 anos para ser conquistada.
É que o dever do cuidado recai primordialmente sobre as mulheres[5]. Não só por uma suposta aptidão socialmente reconhecida, mas também pela omissão culturalmente imposta. É a estrutura patriarcal[6] em sua forma mais direta que não é diferente no contexto político partidário.
Os partidos políticos detém o monopólio das candidaturas e sua estrutura inegavelmente patriarcal constitui uma barreira quase que intransponível para que mulheres possam disputar cargos eletivos com viabilidade real.
A prática e a observância do comportamento eleitoral e da formação de governos revela que mais candidaturas femininas não necessariamente se reveste em maior representatividade feminina[7]. A dificuldade competitiva perpassa a dificuldade de conseguir recursos para as campanhas[8]. As mulheres tendem a ter mais dificuldade para angariar recursos próprios e de pessoas físicas, ou seja, dependem mais dos recursos partidários.
A dependência dos recursos partidários revela uma dificuldade ainda maior de competitividade no desenvolvimento de candidaturas com viabilidade. A baixa representatividade feminina nos órgãos de direção partidária é elemento que contribui para esse quadro. É a estrutura patriarcal atuando novamente.
Não se vê interesse das agremiações em ceder espaço para que mais mulheres ocupem espaços de poder. Essa é uma distorção do sistema que a EC 111/2021 pretende corrigir com a atribuição da contagem em dobro de votos dados em mulheres e negros nas eleições de 2022 e 2030, para fins de distribuição de recursos.
Daí porque, na prática, mulheres com verdadeiro potencial político são rechaçadas às vésperas das convenções e mulheres sem qualquer interesse político, muitas vezes pertencentes ao núcleo familiar dos dirigentes partidários ou até mesmo de candidatos, são “escolhidas” em cima da hora para preencher a cota de gênero. São as chamadas candidaturas fictícias, lançadas sem qualquer viabilidade político-eleitoral e sem real interesse político, tão somente para garantir uma candidatura masculina.
Infelizmente ainda se vê o lançamento de listas inteiras ou praticamente todo o percentual de vagas destinadas ao gênero minoritário — que atualmente é o feminino — apenas como forma de cumprir o requisito de registrabilidade eleitoral e obter o deferimento do DRAP.
A participação da mulher na política, no exercício de cargos eletivos, é indicador de qualidade da democracia[9] e a sua exclusão afeta não só o desempenho das instituições, mas a legitimidade da própria democracia representativa, questionando assim a própria natureza do regime democrático.
E, nesse passo, o lançamento de uma candidatura fictícia para viabilizar mais candidaturas masculinas denota a fraude ao comando legal do percentual de gênero, que importa violação aos princípios democrático e da proporcionalidade — ato que frauda a ação afirmativa e a vontade do eleitor, contra a finalidade da norma protetiva de direito fundamental (Violação aos artigos 1º, caput, III e V, artigo 5º, I, da CR/88).
Tal proceder, por restringir e obstaculizar os direitos políticos da mulher, é ato ilícito, abuso de direito, descumprimento da finalidade político-social do partido político e forma e mecanismo de violência política de gênero.
A violência política de gênero ocorre desde o momento anterior à candidatura, quando as candidatas fictícias são colocadas na disputa sem a intenção verdadeira de concorrer. E tal como todas as violências de gênero, também a violência política deve ser veementemente combatida pela Justiça Eleitoral.
A prática, como se apontou, é arraigada na estrutura partidária que lança candidaturas sem qualquer interesse em concorrer e, como tais, se conformam como laranjas, eis que servem apenas a viabilizar mais candidaturas masculinas.
Dadas as premissas constitucionais já elencadas quanto à concretização do princípio da igualdade de gênero, é preciso afirmar a inconstitucionalidade em tese de qualquer pretensão de retrocesso em sede normativa, seja para retirar a reserva de vagas de candidatura, seja quanto às reservas financeiras destinadas às campanhas femininas e ao incentivo da formação e participação feminina na política.
A violência de gênero na política está mais presente do que se supõe, prejudicando o mandato daquelas que foram eleitas pelo povo e afastando a mulher da vida política. Reconhecendo a importância do tema, o TSE lançou recentemente campanha de incentivo à participação feminina na política[10].
É preciso, contudo, mais do que uma campanha. É indispensável que a Justiça Eleitoral passe a reconhecer e apontar não só para os candidatos, mas também aos partidos políticos que lançar candidaturas fictícias configura violência política de gênero. É necessário que se denomine corretamente o problema para que seja devidamente combatido, nos termos da Lei 14.192/2021, e se dê resposta aos anseios sociais, de modo que a política afirmativa de cota de gênero surta ao menos o efeito esperado de aumentar, ainda que em passos demasiadamente lentos, a representatividade feminina nos espaços de poder.
Link da matéria original: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/lancamento-de-candidatura-feminina-ficticia-07042022
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[2] A tipificação do crime de violência política, também é novidade no ordenamento brasileiro, trazida pela Lei 14.197/2021 que insere ao Código Penal, o dispositivo 359-P que prescreve: “Artigo 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional: Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa, além da pena correspondente à violência”. O dispositivo, como se infere, é amplo e se volta à preservação do exercício de direitos políticos a qualquer pessoa.
[3] A legislação brasileira ainda uniformizou o uso da linguagem quanto à distinção de gênero e sexo.
[4] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/se/sala-de-imprensa/noticias-se/mp-eleitoral-alerta-partidos-sobre-adequacao-as-normas-de-combate-a-violencia-politica-contra-a-mulher Acesso em: 29/03/2022.
[5] ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos – cultura e processos de subjetivação. 1 ed. Curitiba: Appris, 2018.
[6] No ponto, cabe destacar as palavras do ministro Edson Fachin no prefácio à obra do “A participação das mulheres na política – as quotas de gênero para o financiamento de campanhas no Brasil”, de autoria do Ministro Sergio Banhos: “A travessia da modernidade clássica ao tempo presente é mesmo uma coletânea de contradições. Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, assenta a Constituição da República no primeiro inciso do artigo 5º. A norma impõe a observância de um preceito vinculante e expões uma fratura histórica de discriminação e de exclusão. A participação política das mulheres (ou a ausência de possibilidades reais, materiais, ou efetivas de participação política às mulheres) é indicados desse estar fora do contrato social dos homens. O centro desse mundo masculino oxigenou-se no patriarcado e na aparente apoteoso à vida desprovida do espaço público: ao ínves da praça, apenas o jardim”.
[7] MOISÉS, José Álvaro, SANCHEZ, Beatriz Rodrigues. REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES E QUALIDADE DA DEMOCRACIA: O CASO DO BR, in O Congresso Nacional, os partidos políticos e o sistema de integridade : representação, participação e controle interinstitucional no Brasil contemporâneo / José Álvaro Moisés (org.). – Rio de Janeiro : Konrad Adenauer Stiftung, 201
[8] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/materias/mais-mulheres-na-politica-retrato-da-sub-representacao-feminina-no-poder-1. “O estudo do DataSenado revela que nas eleições de 2018 a proporção de mulheres vitoriosas subiu para 15%, 5 pontos percentuais acima da média da série histórica analisada de 1994 a 2018. A mudança ocorreu simultaneamente à exigência de que os partidos distribuíssem um percentual mínimo de 30% para cada sexo dos recursos públicos de financiamento das campanhas. A obrigatoriedade do patamar mínimo havia sido determinada pelo TSE na consulta formulada por deputadas federais e senadoras da bancada feminina do Congresso Nacional. Dados trazidos pelo DataSenado revelam que em 2018 as mulheres receberam 29% dos recursos públicos destinados ao financiamento de campanhas, ainda abaixo da cota de 30%, porém mais que o dobro do percentual recebido na eleição anterior (14%, em 2014). Outro avanço ocorreu no percentual de candidaturas femininas. Pela primeira vez na história, os partidos políticos cumpriram a legislação de cotas. Desde a criação do dispositivo nas eleições proporcionais estaduais e federais, em 1997, o conjunto dos partidos políticos só conseguiu atingir o mínimo de 30% de candidatas no pleito de 2018. O percentual, de acordo com o levantamento do DataSenado, vinha crescendo desde 2010, quando subiu para cerca de 20%, e em seguida para 29%, em 2014. A tendência de crescimento ocorreu após a Lei 12.034, de 2009, que determinou o preenchimento efetivo de vagas nas listas de candidatos com mulheres, e não apenas a reserva.
[9] LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.
[10] Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Julho/tse-estreia-campanha-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica-com-foco-no-combate-a-violencia-de-genero, acesso em 28.03.2022
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